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O uso da tecnologia na observação da relação pais-bebê, método Bick, na Pandemia SARS-COV-19. Perdas e ganhos

Autora: Dra. Ester Malque Litvin


 
O método Bick de observação da relação pais-bebê foi criado por Esther Bick que, em 1948, o incluiu no curso para psicoterapeutas infantis da Tavistock Clinic. É um método que contribui para a formação do psicanalista através da difícil tarefa de “oobservando", isto é, de receber a experiência emocional antes de organizá-la em um quadro teórico, (E. BICK, 1964). O observador experimenta o impacto emocional de estar incluído em uma família, sem se sentir comprometido a desempenhar papéis que podem ser atribuídos a ele, como conselheiro ou juiz. O observador se esforça, na medida do possível, para evitar distorções no ambiente. Ele também trabalha para estar o mais atento possível às suas próprias emoções e abster-se de julgamento em relação ao que observa ( E. BICK, 1964). Como observa Daghighi, "Para muitos, esse papel mais passivo é uma luta e uma revelação. Muitos profissionais de saúde, em particular, foram treinados como "executores". Apenas estar lá pode ser bastante difícil". (Daghighi, S. et al, 2020) See More

A súbita situação traumática da pandemia de COVID-19 e as consequentes restrições sociais impossibilitaram a deslocação a casa da família, como manda o método Bick. Este método é parte integrante da formação de psicanalistas de várias instituições psicanalíticas em nossa área e institutos lutaram para saber se poderia continuar remotamente. Como escreve Daghighi, “A capacidade defeituosa necessária para isso é parte importante do equipamento de muitos profissionais da área da Saúde Infantil e Infantil"(Daghighi S. et al 2020).

Aceitamos o desafio de usar a tecnologia e passamos a observar via chamada de vídeo do whats app em nossos celulares.

A observação online tem seus limites, mas também descobrimos alguns ganhos. Primeiro, exige do analista um espaço mental ainda mais maleável. Em segundo lugar, amplia o cenário, permitindo que o observador acompanhe o bebê e a família em uma variedade maior de cenários. Por exemplo, quando o bebê G. e sua mãe foram às compras e o observador "foi junto.” (Zuanazzi JB, 2022). Em algum momento, o celular deixou de ser apenas um objeto e passou a ser mais um personagem do cenário. Aos 7 meses, a bebê G., olhou para a tela do celular e sorriu. Nós nos perguntamos o que ele viu na tela. O observador ou ele mesmo? Seu pai disse a G.: "É o J. (o observador)! Diga oi para ela. Eu sei que você quer abraçar J., mas não podemos fazer isso no celular.” (Zuanazzi JB, 2022) Essa descrição nos permitiu entender o lugar que o celular adquiriu como parte do quadro. O observador está claramente "presente".  

Uma relação triangular mãe-bebê-observadora geralmente é construída na observação pessoal. Porém, na observação online, observamos por mais tempo uma relação diádica mãe-bebê. Em alguns casos, o observador fica de fora e se torna “o intruso”. Com a observação online, o observador tem que ter menos agência do que na observação pessoal. Cabe aos pais permitir ou não a entrada de um observador. Assim, no caso do pai de G., pode-se observar como o observador é incluído quando diz: “G., você sabe que vai fazer um ano que J. está conosco?“O bebê olha para o pai e depois para a tela do celular. (Zuanazzi JB, 2022)

No modo online, o observador não pode escolher o ângulo para observar a relação mãe-bebê. Quem escolhe é a mãe. Às vezes a mãe segura o celular pra gente observar o bebê, e a gente não consegue observar a díade. Assim, as cenas ou ângulos selecionados pela mãe com a lente podem nos ajudar a compreender o que a mãe quer revelar ou velar. 

No trabalho remoto, o observador também tem que lidar com o potencial de ser “desligado" a qualquer momento. "Eu fui derrubado várias vezes". (Daghighi, S. et al, 2020). O bebê S. "manda beijos e corta a comunicação. Ela é quem termina a observação (...) deixando o observador". (Magagna & Cardenal, 2020) See More

Pessoalmente, o observador é inundado por muitas sensações diferentes. Ele tem uma visão ampla do ambiente. Ele pode circular no espaço e ajudar o bebê se estiver em perigo. Na observação online, a ansiedade com que o observador se depara é maior pela impossibilidade de poder atuar em situações de risco. 

A tridimensionalidade está faltando nas observações online. A tela nos dá uma visão bidimensional e rasa, limitando a observação detalhada dos gestos e do olhar do bebê e do cuidador. À medida que o bebê começa a se movimentar, na modalidade face a face, ele propõe uma interação corporal direta com o observador. Ainda assim, observamos também que, mesmo por meio da tela, os bebês buscam interagir. Eles são curiosos. Eles conhecem a pessoa que semanalmente aparece na tela, silenciosa mas atentamente.

Algumas dessas observações permitem dizer que é possível realizar a observação pai-bebê remotamente, com perdas e ganhos. Talvez, em alguns casos, tenhamos perdido a intensidade do impacto emocional que a observação física pode proporcionar: "Com o bloqueio, cada um de nós passou para o outro lado do celular olhando um para o outro, meio real, meio virtual; peças aparecendo e peças faltando. O corpo físico do observador atuando como emissor e receptor de emoções é minimizado e seus olhos são substituídos pelas lentes da câmera. A magia se foi!" (Daghighi S. et al, 2020).

Também descobrimos que a observação online destacou a tarefa de aprender a ""observar (Litvin EM, 2015), sem intervir e sem julgar. Focaliza o trabalho de tolerar a forma como cada mãe lida com seu bebê, sem pressa em teorizar e interpretar.

Durante este período de incrível perturbação, também observamos que o observador continuou a desempenhar um papel significativo na rotina das famílias ",oferecendo um certo grau de continência, continuidade e estabilidade nestes tempos de isolamento social, "( Magagna & Cardenal, 2020). O observador poderia ser um ponto de continuidade reflexiva para conter parte da convulsão com a qual essas famílias estavam lutando.

Também observamos diferenças entre as observações que começaram online e as que passaram do presencial para o online como aconteceu com o caso de S., que tinha 18 meses na época do bloqueio do COVID. A primeira observação online ocorreu 30 dias após o bloqueio do COVID. Magagna e Cardenal (2020) relatam que nesses 30 dias que a família ficou sem o observador, após 18 meses de observação presencial, S. sofreu prejuízos em seu desenvolvimento como “comportamento físico repetitivo com menos jogo simbólico, menos palavras e menos interesse em explorar amplamente.” Excitação psicomotora e “um desejo de controlar dispositivos eletrônicos substituiu suas explorações e ela parecia usar essas maneiras para acalmar sua frustração e desespero por estar confinada. (...) S. olha para o celular de vez em quando e franze a testa quando falo. Então ela olha para a TV. Mamãe diz a ela para dizer olá para mim e me mandar um beijo. (...) Ela abre e fecha a boca rapidamente, várias vezes, cerrando os dentes e fazendo um som: “Yai-yai-yai" (...) Sua mãe a convence a mandar um beijo para mim, S. põe a palma da mão aberta na boca, beija e sopra (...)Ptalvez ela esteja tentando descobrir a diferença entre as pessoas na TV e essa pessoa, seu observador que costumava visitar a casa e agora está na tela”. (Magagna & Cardenal, 2020) See More 

O uso da tecnologia foi inevitável durante o bloqueio do COVID, pois era a única maneira de dar continuidade à observação da relação pais-bebê. Como tantos aspectos do trabalho clínico durante a pandemia, essas adaptações no método de Bick exigiram flexibilidade dos observadores, familiares e coordenadores dos seminários. 

Autor Bio 
Dra. Ester Malque Litvin
Psicanalista – Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
Supervisor em Observação Interação Pai-Bebê 
Membro COCAP para a América Latina
 
REFERÊNCIAS:
Daghighi, S., Amini, M., Dodangeh, N., Hashemzadeh, M., Kiani Dehkordi, M., & Nekouei Shoja, N.. (2020). “'Tele-observação' (com telemóvel) de bebés discutida em seminários online de observação de bebés durante o 'novo normal' da pandemia de Covid-19”. Observação Infantil, 23(1-2), 7–15. https://doi.org/10.1080/13698036.2020.1814842 
Bick, E. (1964): “Notas sobre a observação infantil no treinamento psicanalítico”. O Jornal Internacional de Psicanálise, vol. 45. 1964.
Litvin, EM. (2015) “Qual a utilidade de “só observar” sem entrevir com uma interpretação”. Encontro Latino-Americano de Observação de Bebês Segundo o Método de Esther Bick, apresentação da ALOBB e AIDOBB. (comunicação oral). Porto Alegre.
Maganha, J. e Cardenal, M. (2020) Um evento de desenvolvimento profissional vinculado a vídeo na Argentina, discutindo a observação infantil no estilo de Esther Bick: uma discussão de duas observações online de um bebê em sua família, durante o bloqueio do COVID-19, 13 de agosto de 2020, Observação Infantil, 23:3, 116-132, DOI: 10.1080/13698036.2021.1876944
Zuanazzi, J. B.. (2022) Relatórios de observação, no seminário de supervisão de observação da relação pais-bebê, sob a orientação de Ester Malque Litvin. CEAPIA (Centro de Estudos, Atendimento e Pesquisa da Infância e Adolescência). Porto Alegre.

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