eu sou g: Daniel6D/Pixabay


Reflexões sobre tiroteios em massa

Os psicanalistas Leda Herrmann, Luiz Moreno Guimarães Reino e Fernanda Sofio refletem sobre a psicologia dos atiradores em massa.


bem: farmácias não oferecem, ainda não,
maneiras de pular de um jato.

João Cabral de Melo Neto (1985) [1] 


No início dos anos 1980, o psicanalista e pensador brasileiro Fabio Herrmann (1944-2006) definiu o que descreveu como uma regime de ataque, um estado de coisas que explicava então os eventos recentes, particularmente a tentativa de assassinato do Papa João Paulo II, mas também o assassinato de John Lennon e a tentativa de assassinato de Ronald Reagan. 

As idéias de Herrmann desenvolvidas naquela época sobre pensamento e açao Parece útil pensar sobre o mundo em que vivemos agora, especialmente neste momento presciente em que uma série de tiroteios em massa atormenta a sociedade americana, bem como outras sociedades ao redor do mundo. Não é uma tendência particularmente nova, é claro, mas tem parecido perturbadoramente frequente ultimamente.

O texto de Herrmann é extremamente complexo e sofisticado tornando-se impossível de resumir. Encorajamos fortemente o leitor, especialmente qualquer leitor que entenda português, a procurar o texto original. Aqui, vamos analisar algumas ideias para uma discussão inicial, apresentando alguns fragmentos que podem ajudar a pensar sobre esse fenômeno.  

Uma pergunta permanece
Quando o Papa João Paulo II foi baleado na Praça de São Pedro em 1981, ele se perguntou: “Por que eu? Por que o papa?” Com base nessa reação simples e espontânea, Herrmann faz várias considerações interessantes. “Expressa a surpresa incrédula de quem leva um tiro (Por que eu?) e também um princípio reflexivo (por que o papa?)” Há o início de uma mudança: de alvo de uma tentativa de assassinato a pessoa (mim?), e de pessoa a sujeito de uma reflexão (porque?) De certa forma, foi o homem que se tornou papa, Karol Józef Wojtyła, que se perguntou: o que eu me tornei que agora é alvo de intenções assassinas?

Foi a própria vítima da tentativa de assassinato que iniciou um processo analítico: a primeira pessoa a devolver o pensamento a uma ação. O que podemos fazer agora é levar isso um pouco mais longe.  

O mundo em que vivemos
Meu entendimento de Herrmann é que, para ele, não pensamos no mundo em que vivemos: é o mundo em que vivemos que nos pensa. As informações, ou “opiniões”, nos são transmitidas em jornais e debates acalorados, e se tornam verdades, no sentido de que ditam nosso mundo e são defendidas com força. Em vez de argumentos ponderados, essas verdades são semelhantes a “posições” na guerra. Há pensamento crítico zero ou mínimo, e aqueles que mantêm tais posições raramente aceitam contra-argumentos ou uma discussão produtiva. 

Como resultado, nosso mundo contemporâneo é aquele em que muitas pessoas sentem uma grande impotência e medem seu valor contra o de grandes personalidades, ou pelo menos era o que acontecia nos anos 1980: como Lennon conseguiu crescer tanto quando meu própria vida é tão pequena e insignificante? 

Lacan e Hermann
O discurso capitalista foi definido por Lacan (Seminário XVIII) como uma transformação do impossível em impotência. Não que seja impossível atingir um ideal, mas que você falhou. Tal discurso disfarça a impossibilidade estrutural em impotência individual, conversão que se sintetiza na palavra: perdedor.

Em contraste, Herrmann definiu a tentativa de assassinato como uma transformação da impotência em onipotência. “A impotência revelada por uma tentativa é mascarada como onipotência.” Através de um ato isolado e destrutivo, um indivíduo tenta alterar a ordem do mundo. 

Essas duas formulações podem se complementar: 






O discurso capitalista é sustentado por uma celebridade. Uma celebração repetitiva que constantemente joga na cara a inatingibilidade de um ideal em você. Você-perdedor fracassado. Quem opera a inversão abrupta do estado de impotência é o autor da tentativa. Os personagens cujo destino (inconsciente recíproco) é se encontrar: “A tentativa é o diálogo [sem palavras] entre os dois últimos indivíduos da modernidade”, escreve Herrmann – um “olá em forma de tiro”.  

De um lado, temos uma celebridade cuja função é sustentar o discurso do capitalista, jogar na sua cara que o ideal é alcançável: você-perdedor falhou. Na outra ponta, temos o autor de uma tentativa que opera um desfecho abrupto e suicida para o estado de impotência. Ambos são como personagens cujo destino (inconsciente recíproco) é se encontrar: A tentativa é o diálogo [sem palavras] entre os dois últimos indivíduos da modernidade”, escreve Herrmann – um “olá em forma de tiro”.

Redes sociais
Com as redes sociais, isso parece mudar: os indivíduos, a princípio, sentem-se fortalecidos e finalmente suas vozes são ouvidas, pois compartilham suas “posições” em plataformas como Facebook ou Instagram. Eles sentiam que suas opiniões eram equivalentes às de jornalistas famosos, que tinham leitores e “seguidores”. 

Com o tempo, ficou claro que qualquer pessoa pode postar qualquer coisa online, inundar a internet dessa forma, mas sua influência ainda é restrita. Ter ou não seguidores tornou-se uma grande fonte de preocupação e frustração para muitos em nossa sociedade. Eles permaneceram impotentes, agora não apenas individualmente, mas como grandes grupos de pessoas.

atos puros
Aqueles que tentaram tirar a vida do Papa, Lennon e Reagan foram incapazes de tolerar sua própria insignificância, em comparação com essas grandes personalidades, e praticaram atos de raiva. Opções, explica Herrmann, são meramente pensamentos coagulados; são opiniões levadas às últimas consequências. Em última análise, eles são atos puros.

atos puros “declaram suas razões” e, portanto, “não podem ser explicadas”, diz Herrmann. São gestos autodestrutivos, no sentido de que o perpetrador morre ou é condenado à prisão perpétua. Mas a necessidade, o impulso interno para executar o ato, a matança, é tão grande que nada mais importa, nem mesmo a vida do assassino. Atos puros não são racionais - ou, se isso for impossível, são apenas minimamente racionais - e são altamente simbólicos.  

De volta ao presente
Como essas ideias nos ajudam a pensar sobre o que está acontecendo nos Estados Unidos hoje? Como podemos recontextualizar as ideias de Herrmann do início dos anos 1980 até 2022. O que vemos hoje nos Estados Unidos são tiroteios em massa, não assassinatos individuais ou tentativas de assassinato de personalidades altamente carismáticas. Muitas vezes, eles são transmitidos ao vivo nas redes sociais, o que era inimaginável na década de 1980. E alguns dos alvos são crianças de cinco anos de idade. 

Mas a impotência dos assassinos hoje parece a mesma. A necessidade de agir. Além disso, Herrmann observou que os assassinos eram principalmente do sexo masculino, e isso também permanece verdadeiro. Apesar da frequência com que os tiroteios em massa se tornaram, não me lembro de nenhuma mulher atiradora em massa. 

O que Herrmann descreveu como psicose de ação parece prevalecer. Ou seja, o atirador não pensa, ele é pensado pelo mundo em que vive, e os pensamentos que o pensam são mortais e venenosos. Ele realiza atos puros, característicos da psicose da ação, uma forma trágica de psicopatologia coletiva.

É possível pensar nos atiradores em massa americanos, geralmente do sexo masculino, muitas vezes com idade entre 18 e 22 anos, como portadores de impotência, no sentido de se sentirem incapazes de fazer diferença no mundo, de se sentirem insignificantes, e essa forma de psicose como psicose de ação.

Se esse quadro diagnóstico extremamente breve for preciso ou relevante, a próxima pergunta é: como reintroduzir o pensamento crítico em nosso mundo? Isso em si parece crítico. Esses pensamentos que estão pensando em nós, ou tantos de nós, envolvendo armas e instalações de tiro precisam ser examinados e abalados. 


[1] Tradução de Dylan Blau Edelstein e Fernanda Sofio. Original em português de “Sujam o suicídio” In Poesia completa e prosa. AC Secchin (Org.), Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2008. p. 549. 

autores
Leda Herrmann
Membro Titular, Analista Formador e Supervisor da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo; doutorado em Psicologia Clínica (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo); autor de Andaimes do Real: A Construção de um Pensamento [Andaimes do real: a construção de um pensamento psicanalítico], entre outros textos.
 



Luiz Moreno Guimarães Reino
Membro Filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo; doutorado em Psicologia Social (Universidade de São Paulo); autor da dissertação Destino e Daimon na Psicanálise [Destino e Daimon na Psicanálise], entre outros textos.
 






Fernanda Sofia 
Membro Ativo da American Psychoanalytic Association; doutorado em Psicologia Social (Universidade de São Paulo), autor de Literacura: Psicanálise Como Forma Literária [Literacura: a psicanálise como forma literária], entre outros textos.









 
 Voltar para Blog Diário de Psicanálise