Blog Mentes das Crianças na Linha de Fogo
SOS Brasil
Alicia Beatriz Dorado de Lisondo


 … é possível prever que em algum momento a consciência da sociedade despertará e a lembrará que o pobre homem deveria ter tanto direito à assistência à sua mente como tem agora à ajuda vital oferecida pela cirurgia; e que as neuroses ameaçam a saúde pública tanto quanto a tuberculose, e podem ser deixadas tão pouco quanto esta aos cuidados impotentes de indivíduos da comunidade. Quando isso acontecer, haverá instituições... para as quais serão nomeados clínicos com formação analítica, para que... as crianças para as quais não há outra escolha senão entre a correria selvagem e a neurose, possam ser capazes, através da análise, de resistência e de trabalho eficiente.

Freud (1918) “Linhas de progresso na terapia psicanalítica”  


No Brasil, a Covid inflamou uma situação já catastrófica. Revelou a miséria estrutural das pessoas pobres e o sistema em que estão inseridas. Esta situação conduziu a um desastre na luta contra a pandemia; um desastre que resultou em 700,000 mortes. 

O SOS Brasil foi uma resposta psicanalítica a esta catástrofe. Este projeto é uma tentativa de oferecer escuta psicanalítica para abrir a possibilidade de dar expressão a uma dor insuportável. Nasceu de um apelo à expressão de uma responsabilidade social psicanalítica. Como a citação acima esclarece, esse chamado começou com Freud. 

Bebês, crianças e adolescentes, bem como os responsáveis ​​pelo desempenho das funções parentais e os profissionais da saúde, da educação e do judiciário, correm risco de traumas cumulativos. Eles precisam do oxigênio psíquico da escuta e da contenção psicanalítica para lidar com a dor, o terror e o desamparo. Nosso compromisso é evitar que traumas dizimem esses seres humanos. A psicanálise contemporânea reconhece o potencial do analista em oferecer uma experiência inédita, capaz de abrir novos horizontes e possibilitar que novas representações se enraízem no psiquismo. 

Nós, como psicanalistas do século XXI, não podemos limitar o nosso trabalho ao ambiente da prática privada. É necessário ir além das paredes dos nossos consultórios. Este movimento nos confronta mais diretamente com lugares onde nos sentimos impotentes e nos obriga a trabalhar com essa realidade psíquica. A partir da segurança dos nossos escritórios é mais possível confiar em supostos conhecimentos. Desta forma, avançar para o social e para as nossas comunidades convida a um reconhecimento mais profundo do desconhecido. Como nos lembra Bion, deve ser para isso que nos orientamos como psicanalistas. 

Desde a criação do projeto, atendemos 482 crianças, adolescentes, pais e cuidadores. O Projeto SOS Brasil é divulgado por meio de seu site, redes sociais, programas de rádio e TV e diversos espaços científicos com o objetivo de informar a população sobre a assistência prestada por este projeto. Todos os psicanalistas participantes do SOS fazem parte de um subgrupo, denominado ateliê. Esses grupos realizam workshops (a cada 15 dias com duração de uma hora e meia) e são liderados por um analista sênior. Estas reuniões proporcionam contenção e, portanto, funcionam para melhorar os processos de pensamento e a criatividade. Ajudam a metabolizar as intensas ansiedades que surgem quando trabalhamos na linha de frente das catástrofes psíquicas.  

Temos um total de 11 ateliês divididos em 5 áreas de trabalho: bebés e famílias (0 aos 3 anos), crianças (3 aos 11 anos), adolescentes (11 aos 21 anos), adultos (cuidadores), Instituições, e grupo corporal . Este último é uma equipe multidisciplinar com profissionais de diversas áreas: pediatras, psiquiatras, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, consultores em lactação, osteopatas, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais, para atender às diversas demandas que o atendimento à criança e ao adolescente exige. Cada um desses ateliês conta com um coordenador e um número variável de psicanalistas participantes. Esses grupos de trabalho permitem a discussão clínica e também ajudam o analista a desenvolver seu potencial de pensamento criativo, estético e poético.

Como atendimento de urgência propomos um número reduzido, de 3 a 8 sessões. Buscamos a compreensão psicanalítica – contato emocional que pode costurar os buracos causados ​​pelos traumas, sangramentos no corpo vivo e no tecido mental. Para ampliar a metáfora corporal, oferecemos atendimento de emergência para estancar o sangramento dessas graves feridas psíquicas. 

Existem reuniões científicas, realizadas uma vez por mês, nas quais analistas seniores respondem às apresentações dos pacientes nos diferentes eixos. Além disso, foi realizado um projeto de pesquisa com analistas participantes do Projeto SOS Brasil, sobre sua visão do Projeto. A seguir estão os temas que observamos em cada eixo. 

No eixo I os bebês e a família (0 a 3 anos) encontramos depressão materna. O bebê e a mãe muitas vezes carecem de apoio paterno. Às vezes, um bebê indesejado apresenta distúrbios no desenvolvimento emocional devido a conflitos no relacionamento primário entre mãe e bebê.

No eixo II Crianças (3 a 11 anos) encontramos muitas crianças com distúrbios do espectro do autismo, erroneamente diagnosticadas como doentes mentais ou deficientes intelectuais. Além disso, vemos distúrbios psicossomáticos, queixas escolares e traumas devido à incapacidade de lamentar a morte de pais e cuidadores.

No eixo III Adolescentes (11 a 18 anos) encontramos tentativas de suicídio, automutilação, violência sexual, dependência de drogas, apatia, afastamento do sistema educacional e comportamento anti-social.

No eixo IV, Cuidadores: profissionais da saúde, da educação, do direito, pais e cuidadores procuram o SOS quando se sentem desamparados, desorientados e sem recursos psicológicos para lidar com situações traumáticas, depressão grave, ansiedade e dor social.

O eixo V, Instituições No Brasil, a pandemia de Covid-19 deixou mais de 200,000 mil órfãos cadastrados. Os psicanalistas oferecem aos profissionais da instituição uma continência psíquica que permite o acesso aos seus recursos internos e possibilita ressignificar suas experiências.

Temos tentado divulgar o projeto SOS através de muitas entrevistas nos meios de comunicação, no Instagram, bem como apresentá-lo no “Diário de la Calle de Fepal” e no “Conscientizar”. Como parte deste esforço, será lançado um livro no final de 2023. No Congresso da IPA em Cartagena, este projeto comunitário foi premiado com o primeiro lugar e reconhecido pela sua contribuição efetiva e inestimável para a área da saúde.

Comecei com uma citação de Freud de mais de cem anos atrás. Concluirei com outro dos psicanalistas franceses Maria Torok e Nicholas Abraham. “… todas as palavras que não puderam ser ditas, todas as cenas que não puderam ser lembradas, todas as lágrimas que não puderam ser derramadas serão engolidas, assim como, ao mesmo tempo, o trauma... o luto indizível instala no sujeito um segredo sepultura… (um) inconsciente que leva uma vida separada e escondida. " 

Os pacientes socialmente vulneráveis ​​sabem muito sobre o sofrimento psicológico e sobre as feridas sangrentas na alma. Até recentemente, desconheciam a psicanálise e seu poder transformador. Um adolescente promete ao analista ao final das sessões previstas: não quero ir para outro serviço. Espere por mim, espere por mim. Vou estudar, trabalhar e me tratar de novo com você, com você. Espere por mim!

Gostaria de agradecer ao IPA, PACE e Harvey Schwartz, FEBRAPSI, e a todos os colegas que trabalham na SOS Brasil pelo apoio e incentivo a este projeto.

Referências
Abraham, N. & Torok, M. (1984) “O Objeto Perdido – Eu”: Notas sobre Identificação dentro da Cripta. Investigação Psicanalítica 4:221-242
Freud, S. (1919) Linhas de Avanço na Terapia Psicanalítica. A Edição Padrão das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud 17:157-168


Autora Alicia Beatriz Dorado de Lisondo
Membro Titular da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Campinas (SBPCamp) e das sociedades componentes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) - International Psychoanalytical Association (IPA). Cofundadora do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas. Psicanalista de crianças e adolescentes do IPA. Membro da Associação Latino-Americana de Observação de Babis - Método Esther Bick (ALOBB). Participante do Protocolo de Psicanálise e Autismo do Grupo Prisma (GPPA). Coordenador do projeto SOS Brasil com patrocínio da Federação Brasileira de Psicanálise (FEBRAPSI), Federação Latino-Americana de Psicanálise (FEPAL) e Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Co-Coordenador do grupo de estudos de adoção e parentalidade da SBPSP. Coordenador do grupo de estudos em Autismo: Clínica e Pesquisa - SBPSP. 

 


 De volta ao Blog Mentes das Crianças na Linha de Fogo